sábado, 11 de abril de 2009

POLÍCIA JUDICIÁRIA E SEGURANÇA PÚBLICA

O Título II da Constituição da República trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, iniciando no artigo 5o o Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, nos seguintes termos:

“Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)” (grifo nosso).

Depois do preâmbulo, esta é a segunda referência feita pela Constituição à segurança como direito e valor básico que deve ser levado em consideração quando se quiser alcançar a correta interpretação e o pleno entendimento de todos os demais direitos, garantias e princípios que se encontram enumerados em todos os setenta e oito incisos e parágrafos que integram o dispositivo constitucional acima citado.

Logo em seguida, a Constituição faz sua terceira referência à segurança. Essa terceira menção encontra-se no artigo 6º, que trás o já consagrado “piso vital mínimo”, nos seguintes termos:

“Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifamos).

Em razão dessas honrosas menções constitucionais, observamos que sem segurança não é possível garantir o direito à vida, à igualdade, à propriedade e à liberdade. Portanto, entendemos que a segurança é um direito que precede os demais que dele dependem, já que são eles justamente os bens que a segurança visa proteger. Quando pensamos em segurança "lato sensu", pensamos nos instrumentos legais, materiais e humanos que são necessários para a preservação de bens juridicamente preciosos a todas as pessoas, como o são aqueles que já enumeramos acima.
Notamos nos últimos anos que há no meio acadêmico um crescente interesse em buscar compreender em qual medida a segurança está relacionada com todas as demais áreas vitais da sociedade.

Todos sabem que para uma sadia qualidade de vida é preciso garantir a todos o acesso à educação, à saúde, à justiça, à moradia, aos transportes etc., no entanto, sabemos que sem segurança nenhum destes importantes direitos essenciais à sadia qualidade de vida das pessoas poderão ser exercidos. Por isso, parece-nos razoável concluir que a segurança é, antes de tudo, um pré-requisito para que outros importantes direitos possam ser efetivados. Talvez por isso muitos não se dêem conta do quão valiosa é a segurança, haja vista ser um requisito intrínseco das demais atividades humanas.

Etimologicamente, a expressão segurança é equívoca, com enorme abrangência e com interferência e ligação com inúmeras outras áreas do conhecimento e da atividade humana.
A segurança pública, por sua vez, apesar de também possuir conceito de grande abrangência, podemos considera-la em âmbito muito mais limitado e vinculado, dentro daquilo que cabe ao poder público realizar, haja vista sua natureza de prestador de serviços à população.

A segurança pública é uma atividade decorrente do poder de polícia estatal que abrange ordem pública, prevenção de infrações penais, defesa civil, vigilância sanitária, engenharia e fiscalização de tráfego, limpeza e iluminação pública, controle e fiscalização de determinadas atividades comerciais, tais como bares, casas noturnas, transportes públicos, hotéis, pensões e hospedarias em geral, comércio ambulante etc., dentre várias outras atividades desempenhadas pelo poder público, secundariamente relacionadas com a segurança da população e que, por isso, devem ser contabilizadas no entendimento de segurança pública, tais como organização de espaços públicos, iluminação e limpeza públicas, sinalização etc.

Jean-Claude Monet
[1] apresenta definição bastante precisa a respeito de segurança pública. Senão vejamos:

“A noção de segurança pública recobre, hoje, todo um conjunto de objetivos atribuídos pelos textos jurídicos que regulamentam a atividade policial. Mas ela integra também as demandas múltiplas e heteróclitas que o cidadão dirige à polícia. Ela abarca, enfim, práticas policiais rotineiras, que as tradições próprias de cada serviço legitimaram pelo registro: ‘Sempre fizemos assim’. Incluem-se nas atividades de segurança pública: a vigilância da higiene e da tranqüilidade das ruas e dos imóveis, a proteção das pessoas e dos bens contra as ações dos delinqüentes, dos vândalos e dos baderneiros. Patrulhas pedestres ou motorizadas, guardas de estabelecimentos ou de personalidades diversas, organização de serviços destinados a facilitar a circulação dos automóveis, operações de socorro de urgência, escoltas de bens e de detidos, vigilância das imediações das escolas, das zonas industriais e portuárias, controles relativos à aplicação de regulamentações heteróclitas – sobre o consumo de bebida, as publicações destinadas à juventude, o comércio ambulante, os táxis, as armas... – são o quinhão cotidiano dos policiais ligados às tarefas de segurança pública”.

Como se verifica, a segurança pública engloba uma série de atividades que visam à prevenção, não apenas de infrações penais, mas também de acidentes, disseminação de doenças contagiosas e conflitos sociais em geral, que podem afetar de uma maneira geral a segurança da população.
A grande maioria das atividades de segurança pública é desempenhada atualmente pelo poder público municipal em nosso país, mas, algumas importantes atividades relacionadas, em especial aquelas relacionadas à prevenção e repressão ao crime, ao patrulhamento ostensivo e à fiscalização, prevenção e combate aos incêndios, são atribuídas aos Estados.

Ressaltamos, neste ponto, que a atividade relacionada com a apuração das infrações penais, qual seja a função de polícia judiciária, encontra-se vinculada com o sistema de segurança pública por questões de política organizacional, tendo em vista sua natureza inequívoca de função essencial à justiça.

A polícia judiciária é atividade atribuída às Polícias Civis, no âmbito estadual, e à Polícia Federal na esfera de competência das infrações penais federais. Ambas instituições possuem outras atribuições que são diretamente afetas à área de segurança pública. As funções de polícia judiciária, no entanto, apesar de estarem relacionadas com a segurança pública, não podem ser diretamente a ela relacionadas.
Historicamente, especialmente no Brasil, tem-se discutido muito a respeito dessa atividade (polícia judiciária) e ainda hoje existem discussões acaloradas a respeito do tema, inclusive no Congresso Nacional, por onde tramitam diversos projetos de lei e de emenda constitucional relacionados com o tema, com as mais variadas vertentes. A título de exemplo, há muito se defende a adoção do juizado de instrução em nosso país, em substituição ao tradicional sistema de polícia judiciária.
Desde a reforma do Código de Processo Penal na década de 40, talvez pela forte influência européia de nossa legislação, lutou-se pela adoção do juizado de instrução. Apesar da antiguidade do debate, ainda hoje a discussão é recorrente sobre esse tema e, inclusive, há projeto em trâmite na Câmara dos Deputados buscando aprovação para a adoção desse sistema. Em outro campo de discussão, questiona-se a conveniência de transferir essa atribuição a outras instituições, tais como o Ministério Público, como já ocorre em alguns países da Europa, inclusive em Portugal.

Apesar das muitas discussões doutrinárias e políticas, muitos entendem que o sistema atual de apuração das infrações penais é o ideal. De fato, nosso sistema atual é perfeitamente adequado a nossa realidade e se coaduna muito bem com o conjunto de garantias individuais contidos na Constituição da República, apenas necessitando de alguns poucos aprimoramentos, tais como a adoção de prerrogativas e garantias que lhe conferissem maior independência, já que o inquérito policial deve ser entendido como instrumento legal destinado à apuração dos fatos de maneira imparcial.
Nessa esteira, trazemos a preciosa lição de André Rovegno[2]:

“(...) a investigação criminal em geral e o inquérito em particular destinam-se à apuração da verdade plena, sobre fato supostamente criminoso, posto que jamais podem ser tidas como atividades preparatórias da ação penal, sob pena de se fazer dessa delicadíssima atividade estatal uma fonte vigorosa de processos penais desnecessários e equivocados. A investigação criminal, conforme o caso, embasa o processo; jamais deve deliberadamente prepará-lo”.

Malgrado o inquérito policial não ser destinado precipuamente ao mero embasamento da ação penal, porquanto destinado a busca da verdade real, em muitos casos não se tem demonstrado totalmente útil a essa finalidade. De fato, a boa técnica demonstra que a investigação policial deve ser realizada de maneira serena, sem afogadilho. Em que pese a necessidade de rapidez na execução dos trabalhos, a fim de que não se percam as provas ainda presentes com o calor dos acontecimentos, o bom senso recomenda que certas questões não devam ser decididas com precipitação, porque a pressa, na maioria das vezes, não se coaduna com a perfeição.

As discussões a respeito desse tema precisam se aprofundar mais, para que possamos alcançar uma reforma adequada para o sistema. Um questionamento pertinente ao estudo dessa questão diz respeito às garantias necessárias para o desempenho imparcial e independente das atribuições de polícia judiciária. Outro ponto de grande relevância é a necessidade da adequada definição da polícia judiciária, tendo em vista sua natureza implícita de função essencial à justiça.

Apesar das instituições incumbidas da polícia judiciária também guardarem relação com atividades afetas à segurança pública, as discussões jurídicas e críticas a respeito da forma como vem sendo desempenhada essa importante atividade, não devem transformá-la em símbolo de outros interesses que não sejam os mais elevados interesses da nação, sem o que jamais poderemos avançar em seu ideal aprimoramento.

É interessante ressaltar que as discussões e dúvidas aqui trazidas não são exclusivas de nosso país. Existem questionamentos nesse mesmo sentido em alguns países europeus, onde são abordadas questões relacionadas à polícia judiciária – lá também denominada polícia criminal – atividade definida como extremamente especializada e complexa e que mantêm estreita relação com a justiça criminal.

Jean-Claude Monet
[3], ao tratar especificamente sobre o tema, conclui da seguinte maneira:

“(...) a ligação integral das atividades da polícia criminal com as autoridades judiciárias deveria logicamente acarretar a dos homens que as empregam. As liberdades individuais não estariam com isso forçosamente mais garantidas. Mas isso frearia, provavelmente, as intrusões demasiado ostensivas dos governantes em negócios criminais que os tocam de perto ou de longe”.

Entendemos que seja qual for o sistema que venha a se adotar no futuro, o ideal seria que a polícia judiciária se mantivesse estruturada de forma a permanecer independente do Ministério Público e do Poder Judiciário, integrando-se e complementando-se com essas instituições, sem, no entanto, integra-las. A polícia judiciária deve fazer parte do sistema de justiça criminal, ao lado do Ministério Público e da Defensoria Pública, mas sem servir de supedâneo exclusivo de um ou de outro, posto que sua verdadeira vocação é de vetor na busca da verdade real. Por isso mesmo, deve ser mantida independente das instituições encarregadas de acusar, de defender e de julgar: quem investiga não deve acusar e, quem acusa, não deve julgar.
A independência funcional, evidentemente, não deve impedir o exercício do controle sobre a atividade investigativa, hoje já realizado tanto por parte do Poder Judiciário e como do Ministério Público, além dos próprios controles internos decorrentes da atividade correcional administrativa, podendo-se aprimorar esse controle com a criação de um conselho nacional que vise uniformizar determinados procedimentos em todos os Estados e na própria esfera federal.



[1] Polícias e Sociedade na Europa, p. 107 e 108.
[2] O Inquérito Policial e os Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa, p. 135.
[3] Op. cit., p. 118 e 119.
Autor: Emanuel M. Lopes, Delegado de Polícia e Mestre em Direito pela UNIMES