quarta-feira, 20 de abril de 2011

O QUE É AUTORIDADE POLICIAL?

Publicamos abaixo a brilhantíssima lição do Professor Dr. Hélio Tornaghi, que nos foi enviada pelo nobre colega Dr. Fernando Beato.
Trata-se de assunto bastante oportuno para os tempos atuais, em que membros de várias instituições, inclusive do próprio Poder Judiciário, tem generalizado o conceito de autoridade policial, causando confusão nos meios acadêmicos e na população em geral.

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Parecer do Professor Doutor HÉLIO TORNAGHI

“A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas jurisdições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria”.

Autoridade.
O conceito de autoridade está diretamente ligado ao de poder de Estado. Os juristas alemães, que mais profundamente do que quaisquer outros estudaram o assunto, consideram autoridade (Behörde) todo aquele que, com fundamento em lei (auf gesetzlicher Grundlage), é parte integrante da estrutura do Estado (in das Gefüge der Verfassung des Staates als Bestandteil eingegliederte) e órgão do poder público (Organ der Staatsgewalt), instituído especialmente para alcançar os fins do Estado (zur Herbeiführung der Zwecke des Staates), agindo por iniciativa própria, mercê de ordens e normas expedidas segundo sua discrição (nachPflichtgemässen Ermessen).
Daí se vê que a Autoridade:
a) é órgão do estado; b) exerce o poder público; c) age motu próprio; d) guia-se por sua prudência, dentro dos limites da Lei; e) pode ordenar e traçar normas; f) em sua atividade não visa apenas aos meios, mas fins do Estado.
São ainda os publicistas alemães que proclamam: a autoridade é o titular e portador (Behörde ist der Träger) dos direitos e deveres do Estado (staatlicher Reche und Pflichten). Não tem personalidade (Sie besitzt Keine Rechtspersönlichkeit) mas faz parte da pessoa jurídica Estado.
Em outras palavras: o Estado é o titular do poder público. Mas como o exerce? Evidentemente por meio de pessoas físicas que a lei investe daquele poder.
Elas são o Estado. O pensamento delas é o dele: a vontade delas é a dele. Tudo é deixado à sua discrição. Não ao seu arbítrio, Que arbítrio é capricho e não conhece lei.
Seria ilógico que o Estado traçasse os limites do conveniente ao bem público e a ele próprio, por meio de seus órgãos, violasse esses lindes. Mas dentro da área de legalidade delimitada pelo Estado, cabem aos órgãos encarregados de lhe atingir os fins, a escolha dos meios mais adequados. Têm eles autoridade para escolher os caminhos.
Por outro lado, não se trata do exercício de um poder particular, mas do próprio poder público. Daí a posição proeminente da autoridade em relação aos particulares. O status subjectionis desses em relação ao Estado coloca-os como súditos dos que exercem o poder público. A autoridade, dentro de sua esfera de atribuições, não pede, manda. A desobediência á ordem as autoridade pode até configurar infração penal.

Autoridade policial.
Estabelecido o conceito de autoridade, vejamos o que se deve entender por autoridade policial.
É de todos os tempos a preocupação das sociedades organizadas em zelar o bem comum.
Deve o Estado velar por sua própria segurança e pela de cada um de seus súditos, proteger suas pessoas e resguardar as coisas contra investidas que possam lesioná-las, além de prover aos legítimos anseios de paz e de prosperidade.Esse cuidado especial que incumbe à Polis (palavra com que os gregos exprimiam o que hoje chamamos Estado) dá lugar a uma atividade conhecida como de polícia.Os órgãos que a exercem foram em toda a Antigüidade, considerados altas magistraturas.
O edil, o censor, o cônsul eram, sobretudo, os policiadores da cidade. A polícia era – e é – um dos mais altos órgãos do poder público e por meio de uma atividade importantíssima ela assegura intransigentemente a ordem sem violar mas, ao contrário, protegendo os direitos individuais. A difícil tarefa de estabelecer o equilíbrio entre as exigências da segurança social e as legítimas aspirações individuais é a que ela tem de cumprir a cada instante, sem desfalecimento mas também sem prepotência. Não é fácil encontrar a fórmula conciliatória; esse, porém, é o desafio permanente aos que exercem a autoridade policial.
É ela uma faceta do poder do estado e, exatamente, do poder de intervier a cada momento por meio de atos coercitivos, ou seja, de ordens, normas ou providência que restringem o gozo dos direitos individuais. Esse poder não é somente legítimo; é essencial à natureza do Estado, inclusive do Estado de direito, que encontra sua atividade limitada por lei, mas não está impedido de cumprir sua missão. O exercício dele pode ser contrastado, em cada caso, pelos recursos hierárquicos ou pelo acesso ao Judiciário, mas não poderia ser obstruído sem que se negasse o próprio Estado.
A necessidade de agir com rapidez e a infinita variedade de situações que o legislador não pode prever e, muito menos, disciplinar mercê de normas gerais e abstratas, fazem com que esse poder tenha de ser exercitado discricionariamente, ou seja, segundo a prudência daqueles que o detêm e dentro dos marcos legais.
Esse poder de polícia é próprio da administração em geral, mas particularmente necessário ás autoridades policiais, que exercem de duas maneiras:
- pela prevenção;
- pela repressão.
A prevenção se faz mercê de provimentos, ordens e providências tendentes a proteger as coisas (polícia administrativa) e as pessoas (polícia de segurança). É evidente que a defesa das coisas reverte em favor das pessoas e a destas tem como corolário a daquelas. Assim, para ilustrar a afirmação, uma polícia florestal, embora destinada a proteger bosque, parques, matas e jardins, também acautela quem neles se acha. E, por outro lado, o socorro dado pela polícia de segurança a uma pessoa redunda em tutela para as coisas que tem consigo. Mas a finalidade precípua das polícias administrativas como, por exemplo, a polícia do cais do porto, a polícia de um edifício público, a de um barco do Estado, é cuidar do cais, do edifício, do banco. E o objetivo da polícia de segurança, que é a polícia por antonomásia, polícia por excelência, polícia em sentido estrito, é a proteção de pessoas.
A repressão está entregue, no Estado moderno, ao Poder Judiciário. Mas a polícia colabora nessa tarefa e pratica atos tendentes a promovê-la (polícia judiciária). Entre eles os mais importantes são os que, em conjunto, constituem o inquérito policial. Destina-se esse à apuração das infrações penais e de sua autoria.
E por ser a repressão ato de poder do Estado, somente aos que detêm esse poder é dado exercer funções de polícia judiciária.
E por ser a repressão ato de poder do Estado somente aos que detêm esse Estado e os que servem de instrumento para os primeiros.
Nem todo policial é autoridade, mas somente os que, investidos do poder público, têm por tarefa perseguir os fins do Estado. Não é, por exemplo autoridade policial um perito, ainda quando funcionários de polícia, ou um oficial da Força Pública, uma vez que as corporações a que pertencem são órgãos-meios postos à disposição da autoridade. Missão digníssima que, longe de amesquinhar, exalta os que a cumprem com finalidade e sem abuso, com zelo e sem usurpação do poder. Podem esses servidores, eventualmente atuar como agentes da autoridade, mas não são eles próprios autoridades. Para ficar dentro do exemplo citado: um perito é um instrumento ao serviço da polícia judiciária (contingentemente, da polícia de segurança); a Força Pública é uma arma posta a serviço da polícia de segurança (esporadicamente, da polícia judiciária).
Costumeiramente sou avesso a citar autores quando o que se pede é o meu parecer. Mas não posso deixar de recordar aqui a distinção feita pelo mestre do Direito Público em França, Maurice Hauriou, entre a força pública e o poder público.
Embora velha, a lição merece ser recordada. Em resumo: a força é uma energia física, meio de execução que se desgasta com o uso. O poder é a capacidade de dispor da força e se exercitar sem perda de substância. É a força em repouso, que poderia agir como força e não age. O homem forte não precisa usar os punhos para se impor; ele o consegue mercê do poder de que dispõe.
Ele ordena, determina, decide. Hércules, em repouso, comanda.
Essa distinção está ilustrada nos Estados modernos pela separação constitucional entre força pública e poder de decisão. A força pública, civil ou militar está cuidadosamente separada do poder de decidir; ela é instrumento de execução (Précis de Droit Administratif, 9.ª Ed., Paris, 1919, págs 24 e 25).
O órgão que exerce o poder público pode enfeixar também a força. Mas um órgão criado para ser apenas força não pode licitamente assenhorear-se do poder público.
Em geral a força está entregue a um e o poder a outro. É o caso típico da polícia de segurança: a polícia civil detém o poder, a autoridade, enquanto a polícia militar (Força Pública) detém a força.

Mas, para definir cumpridamente a autoridade policial de que fala o art. 4º, cumpre dar um passo adiante e lembrar que se trata de autoridade de polícia judiciária. Qualquer outro órgão, ainda que exerça autoridade em distinto terreno é estranho ao art. 4º do Código de processo Penal. Em meu anteprojeto, toda essa matéria está subordinada à epígrafe: Da Polícia Judiciária (Liv. II, tít. I, arts. 6º a 21). O código vigente, menos preciso, declara que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais…” (sem grifo no original).
Mas o próprio emprego da palavra autoridade exclui qualquer dúvida, pois seria rematado absurdo que um particular ou um órgão-meio do Estado se arvorasse em autoridade. E a referência à polícia judiciária elimina a intromissão de qualquer autoridade, agente da autoridade ou mero funcionário pertencente a outros ramos da administração pública, ainda que policiais, seria abusivo que um mata-mosquitos, por pertencer à polícia sanitária, resolvesse abrir inquéritos, arbitrar fianças, fazer apreensões etc. Ou que um oficial da Força Pública resolvesse tomar a iniciativa de investigar crimes.
Aliás o sentido da lei surge cristalino quando se leva em conta o elemento histórico.
Autoridades policiais sempre foram entre nós os chefes de polícia, seus delegados e, por vezes, os comissários. Quem pensaria, por exemplo, em transformar um oficial da Força Pública, em autoridade policial? Fugiria, por inteiro, ao papel das polícias militares.
Por outro lado, o art. 4º não comporta outra interpretação literal. Ao dizer que “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais”, é evidente que ele se refere aos órgãos da polícia judiciária. Seria tautológico repetir: a polícia judiciária será exercida pelas autoridades da polícia judiciária.
Mas é curial que só a essas ele refere. Ao falar em autoridades policiais esse dispositivo subentendeu: autoridades de polícia judiciária. Teve, portanto, em mira:
1.º) as autoridades. Quem não é autoridade, quem não age motu próprio, quem é órgão instrumental, não está incluído;
2.º) de polícia judiciária e não qualquer outras. Tanto isso é verdade que no parágrafo está dito que a lei poderá abrir exceções, isto é dar competência a autoridades administrativas para fazer inquéritos policiais.
Portanto, só mercê de lei especial pode instaurar inquérito para apuração de infrações penais e de sua autoria, quem é autoridade mas não de polícia judiciária.
As premissas assentadas permitem concluir que são autoridades policiais de que fala a lei de processo, os que:
1.º) exercem o poder de público para consecução dos fins do Estado;
2.º) em matéria de polícia judiciária.
Não são autoridades policiais, no sentido do art.4º:
1.º) os que não perseguem os fins do Estado, mas são apenas órgãos-meios, como por exemplo, os médicos do serviço público, os procuradores de autarquias, os oficiais de Polícia Militar (ou força Pública);
2.º) os que mesmo pertencendo à Polícia em seu sentido amplo, não são polícia judiciária, mas polícia administrativa (ex., Polícia de Parques, corpos de bombeiro) ou polícia de segurança (ex., Força Pública).

Autoridade e agente de autoridade.
Estabelecido o conceito de autoridade, vejamos agora que se deve entender por agente da autoridade.
Existe entre os servidores do Estado, que diz respeito ao poder público, uma escala que pode ser assim reduzida à expressão mais simples.

- servidores que exercem em nome próprio o poder de Estado. Tomam decisões, impõem regras, dão ordens, restringem bens jurídicos e direitos individuais, tudo dentro dos limites traçados por lei. São as autoridades;

- servidores que não têm autoridade para praticar esses atos por iniciativa própria, mas que agem (agentes) a mando da autoridade. São os agentes da autoridade.

- servidores que se restringem a prática de atos administrativos e não exercem o poder público; não praticam atos de autoridade, nem por iniciativa própria, nem como meros executores que agem a mando da autoridade. Não são autoridades nem agentes da autoridade.

Exemplos dos primeiros: juízes, delegados de polícia.

Exemplos dos segundos: oficiais de justiça, membros da força Pública.

Exemplos dos últimos: oficiais judiciários, oficiais administrativos.

Esses conceitos são por demais claros e precisos – claros em seu conteúdo e precisos em seus contornos – para que a lei necessitasse contê-los. Quando, porém agentes da autoridade, quase sempre de boa fé e com o louvável intuito de servir, se arvoram em autoridades, convém que a própria lei reponha as coisas em seu lugar. Creio que seria vantajoso aproveitar o ensejo da modificação do Código de Processo Penal para fazê-los.
Quando elaborei o Anteprojeto, o problema inexistia, pois não havia notícia de que agentes de autoridade se arrogassem autoridade própria. É lamentável engano supor que a tarefa do agente de autoridade o subalterniza e mais deplorável ainda entender que o detentor da força deve ser o titular do poder.
Sobretudo quando esses enganos são causados por melindres pessoais ou de classe que se supõem humilhadas pelo papel de agentes que a lei lhes reserva. Assim como a força militar está ao serviço do poder civil, sem que isso lhe arranhe a dignidade ou o pundonor, assim também a Força Pública é agente da autoridade policial sem que isso importe qualquer diminuição ao eminente valor que ela representa. Ferida ela fica é quando esquece sua destinação legal para apropriar-se de um poder que não é seu.