sexta-feira, 19 de setembro de 2008

ATIVIDADE POLICIAL E SACERDÓCIO

Desde que ingressei na Polícia Civil do Estado de São Paulo ouço dizer que a Polícia é um sacerdócio. Isso sempre foi dito para justificar seu caráter de serviço público essencial e especial, com horários irregulares, plantões, risco para a vida, para a saúde e para a integridade física etc.
Discordo: o policial não é um sacerdote.
A Polícia Civil é uma instituição destinada, primordialmente, ao exercício da Polícia Judiciária, nos termos do que estabelece o artigo 144, parágrafo 4º, da Constituição da República:
§ 4º Às policiais civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.
Não obstante sua competência constitucional, outras tarefas administrativas eventualmente lhe são destinadas, por guardarem relação com as funções de polícia judiciária. Citamos, por exemplo, a expedição de documentos de identidade, administração de Departamento de Trânsito e ou Circunscrições Regionais de Trânsito, expedição de Atestado de Antecedentes, fiscalização de determinadas atividades etc.
Trata-se, portanto, de uma instituição destinada a prestar serviços públicos essenciais à sociedade. Os policiais que integram seus quadros passam por seleção através de concurso público, seguido de treinamento específico na Academia de Polícia, antes de iniciarem o exercício de suas funções. Possuem direitos e deveres que estão previstos em Estatutos estaduais que regulam os funcionários públicos civis, além de outros mais específicos que estão previstos em legislações específicas, tais como a Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo.
O sacerdócio, por seu turno, é atividade de cunho estritamente religioso, que pressupõe entrega absoluta de corpo e alma (literalmente). Por isso, não está sujeita a regulamentações do poder público, porque o sacerdote é um religioso que escolheu entregar a sua vida a uma causa ou doutrina religiosa.
Muitos sacerdotes, por exemplo, fazem votos de não contrair matrimônio, de não constituir patrimônio próprio, de viver e manter-se em absoluto silêncio, de obediência absoluta e irrestrita aos dogmas da Igreja, dentre outras diversas restrições e rigores que essas pessoas se auto-impõem como forma de purificação espiritual.
Por isso, o sacerdócio não pode ser categorizado como trabalho ou profissão, no sentido estrito do termo, porque extrapola esses conceitos, já que são escolhas pessoais daqueles que abraçam a vida religiosa, aceitando de livre e espontânea vontade aderir à doutrina e às restrições que lhe são impostas.
Portanto, por mais específica que seja uma determinada atividade profissional, por mais risco pessoal que o trabalhador se exponha, trata-se de atividade profissional, no sentido estrito do termo, e os riscos a que se expõem seus membros devem ser minimizados através de estudos científicos e de investimentos tecnológicos, porque não é razoável entender-se que o policial está obrigado a sacrificar sua vida e saúde sem qualquer contrapartida.
As dificuldades do trabalho policial devem ser, na medida do possível, diminuídas com o uso das novas tecnologias e estudos científicos que propiciem ao profissional um melhor desempenho de seu mister, tudo visando o interesse público (vide nosso artigo: “A Aplicação dos Princípios da Ergonomia no Trabalho Policial”).
Na Polícia Civil, por exemplo, a pretexto de denominá-la sacerdócio, acredita-se que o policial não necessita de vencimentos dignos, não necessita de plano de saúde e de seguridade adequados ao seu perfil profissional, não necessita de limite para sua carga horária de trabalho, não necessita de tratamento legal específico para sua aposentadoria, não necessita de equipamentos que lhe confiram máxima segurança para o exercício de suas atribuições, dentre vários outros direitos básicos que são desrespeitados.
A título de exemplo, indagamos:
Por que as viaturas policiais não possuem blindagem? Será que o custo de uma blindagem, que poderia salvar a vida de inúmeros policiais é alto demais? Porque todas as Delegacias não são dotadas de detectores de metais, como aqueles instalados em Bancos? A vida de um policial vale menos que uma blindagem ou um detector?
Por que viaturas não possuem Air-Bag, ABS, EBD, dentre outras tecnologias de segurança automotivas que se popularizaram e são acessíveis a um grande número de consumidores atualmente?
Porém, quando voltamos nossa atenção à triste realidade, constatamos que não precisamos falar de blindagem, ABS, Air-Bag e outros recursos ideais para a segurança do policial, porque sequer lhe são conferidos recursos que lhes propiciem condições mínimas de segurança.
De fato, não é difícil para ninguém constatar que circulam atualmente, em qualquer Estado da federação (e não somente das Polícias Civis), um sem-número de viaturas com pneus carecas, amortecedores vencidos, luzes de segurança queimadas, sistema de freios danificados etc. Não bastassem as viaturas, há prédios utilizados pelas Polícias que não suportariam uma inspeção de segurança e saúde do Ministério do Trabalho.
Estamos falando de condições mínimas (e não ideais) de segurança no meio ambiente de trabalho policial, que não são proporcionadas aos profissionais que arriscam sua vida e sua saúde para fornecer um produto cada vez mais escasso hoje em dia: segurança pública.
Autor: Emanuel M. Lopes, delegado de polícia em São Paulo, mestre em Direito.

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